30 de julho de 2010

Hora




Sinto que hoje novamente embarco
Para as grandes aventuras,
Passam no ar palavras obscuras
E o meu desejo canta --- por isso marco
Nos meus sentidos a imagem desta hora.

Sonoro e profundo
Aquele mundo
Que eu sonhara e perdera
Espera
O peso dos meus gestos.

E dormem mil gestos nos meus dedos.

Desligadas dos círculos funestos
Das mentiras alheias,
Finalmente solitárias,
As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos
Como os negros arvoredos
Que baloiçam na noite murmurando.

Ao longe por mim oiço chamando
A voz das coisas que eu sei amar.

E de novo caminho para o mar.
Sophia de Mello Breyner Andersen

14 de julho de 2010

Gostava de lhe chamar "O caminho fadado"


Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E torna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,
E, inda tonto do que houvera,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

Eros e Psique, de Fernando Pessoa

12 de julho de 2010

Canção grata


Por tudo o que me deste
inquietação cuidado
um pouco de ternura
é certo mas tão pouco
Noites de insónia
Pelas ruas como louco
Obrigado, obrigado

Por aquela tão doce
e tão breve ilusão
Embora nunca mais
Depois de que a vi desfeita
Eu volte a ser quem fui
Sem ironia aceita
A minha gratidão

Que bem que me faz agora
o mal que me fizeste
Mais forte e mais sereno
E livre e descuidado
Sem ironia amor obrigado
Obrigado por tudo o que me deste

Por aquela tão doce
e tão breve ilusão
Embora nunca mais
Depois de que a vi desfeita
Eu volte a ser quem fui
Sem ironia aceita
A minha gratidão


Carlos Queiroz

9 de julho de 2010

Respiro o teu corpo



Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

Eugénio de Andrade

3 de julho de 2010

Se


Se és capaz de manter o sangue-frio
enquanto outros à tua volta o estão perdendo
e deitando-se as culpas;


Se és capaz de fiar-te em ti próprio
quando todos duvidam de ti
- e no entanto perdoares que duvidem;


Se és capaz de esperar sem cansar a esperança,
e de não caluniar os que te caluniam,
e de não pagar ódio por ódio
- tudo isto sem dar-te ares de modelo dos bons;


Se és capaz de sonhar
sem que o sonho te domine,
e de pensar, sem reduzir o pensamento a vício;


Se és capaz de afrontar o Triunfo e o Desastre
Sem fazer distinção entre estes dois impostores;


Se és capaz de sofrer que o ideal que sonhaste
o transformem canalhas em ratoeiras de tolos;
ou de ver destruído o ideal da vida inteira
e construí - lo outra vez com ferramentas gastas;


Se és capaz de fazer do que tens um montinho
e de tudo arriscar numa carta ou num dado,
e perder, e começar de novo o teu caminho,.
sem que te oiça um suspiro quem seguir a teu lado;


Se és capaz de apelar para músculo e nervo
E fazê-los servir, se já quase não servem
aguentando-te assim quando nada em ti resta,
a não ser a Vontade, que te diz: aguenta!


Se és capaz de aproximar-te do povo e fazer digno,
ou de passear com reis conservando-te humilde;


Se não pode abalar-te o amigo ou inimigo;
se todos contam contigo e não erram as contas;
se és capaz de preencher o minuto que foge
com sessenta segundos de tarefa acertada;


Se assim fores, meu filho, a Terra será tua,
será teu tudo o que nela existe,
e não receies que to tomem... 
Mas (ainda melhor que tudo isto)
se assim fores, serás um homem!


Rudyard Kipling
[Tradução de Agostinho de Campos]